A opinião do leitor Luís Quintino, sobre o livro "(Em) Pedaços", da autora Ana Granja, lançado no sábado passado.
“Em Pedaços”, de Ana Granja
No passado sábado, no Porto, tive a honra de estar presente na apresentação deste livro. Um livro sobre o Amor, tal como o primeiro já havia sido. Liga-me à Ana Granja um sentimento extremo, porque são extremos os sentimentos que ligam os pais que perdem os seus filhos prematuramente.
Soube-me bem saber que somos parentes de alma. E é através desse verdadeiro parentesco que vou escrever sobre este livro. Crítica não é, mas antecipei que fosse; cumplicidade é, porque é a alma que nos une.
Neste livro, a Ana não se demite de existir. Isso é muito nobre. E fala abundantemente sobre algo da maior importância em processos assim: da magia de um abraço!
Mas fala também de outras coisas.
Do luto: É espantoso como a Ana consegue fazer – e manter – uma clivagem brutal entre o “antes” e o “depois”, assumindo que depois da morte da Inês ficou diferente para nunca mais voltar a ser como era. A sua escrita comprova que não existe dor maior que a sua. E nesta procura desalmada pela Inês, que não chega, é no interior da alma que reside o seu único lugar de sossego.
No processo lancinante da sua escrita, não existe lugar para nenhuma espécie de continuidade. A Inês não está e a Mãe comprova-o desmontando uma série de frases feitas que se usam – sem nenhuma humanidade – para tentar consolar quem sofre assim. Neste domínio, os seus textos revelam tanto de radical como de bondade nos gestos expressivos e transcendentes de Mãe.
Da revolta: Neste livro, a Ana dá conta da sua enorme revolta porque, como ela própria diz, carrega uma dor que o mundo inteiro não consegue abarcar. Por vezes, fala explicitamente de um sentimento que a domina, mas não tem razão de ser: o de ter falhado como Mãe.
Ela própria diz no livro que a dor da falta da Inês não a empresta a ninguém, mas isso também não é verdade. E este livro é mesmo a prova disso. Empresta, e porque empresta, ele vai ser útil a alguém!
Em tudo o que diz respeito à sua revolta a Ana é manifestamente excessiva, chegando mesmo a falar em “repugnância existencial”. Mas numa coisa estamos de acordo: depois de uma perda assim, o Natal deveria passar a ser facultativo. Confesso que, por vezes, me senti arrepiado com a expressão verbal da sua revolta. Compreendo-a, mas não partilho dela.
Fui aprendendo, no meu silêncio, que todos os filhos que morrem precocemente vivem o seu próprio tempo. São verdadeiros “anjos emprestados”, como tão bem nos diz a Cristina, e o seu tempo não tem comparação com outros tempos. Nem se consegue medir com outras escalas. Trata-se de uma convicção muito íntima, sem quaisquer preocupações de enquadramento doutrinário ou místico.
Das doenças: Por vezes, nos seus textos, a Ana deixa escapar o sentimento de uma carga socialmente negativa envolvendo algumas doenças, como a anorexia. E chega mesmo a estabelecer uma comparação com o cancro. Os seus textos, na sua máxima crueza, fazem-nos pensar.
Verdadeiramente, não existem causas boas ou causas más, doenças boas ou doenças más. Existe apenas a dor da perda a sobrepor-se a tudo o resto. Este seu sentimento é ampliado na atenção que presta ao que os outros dizem. Por isso, em algumas partes, o seu livro é muito sofrido. Mas não poderia ser de outro modo. E eu, como seu leitor, agradeço-lhe a força, a frontalidade e a dignidade com que aborda temas tão fracturantes.
Como pode uma Mãe que amou a sua filha com todas as suas forças, e a quem dedicou toda a sua atenção e sensibilidade, ouvir aquilo que em algumas ocasiões tão mal se diz? O estatuto de uma Mãe assim, que ainda cuida de racionalizar o pensamento dos outros, é uma verdadeira lição de vida.
Da Matilde: Considero que este livro foi escrito no fio da navalha relativamente à Matilde, a única irmã da Inês precocemente desaparecida. É dela a sua magnífica capa e é a ela que a Ana, por diversas vezes, exprime de forma sublime o seu amor de Mãe. Considero mesmo como um dos seus pontos altos a carta aberta que lhe dirige a páginas 98.
Mas esta jovem, sobrevivente de uma Mãe amputada, enfrenta uma dupla perda: por um lado, a perda da irmã Inês, que tanto amou; por outro lado, a perda expressa nos sentimentos pungentes e irreprimíveis de sua Mãe. Conheci a Matilde apenas na tarde de sábado e passei a admirá-la imenso. Tentei perscrutar por dentro dos seus olhos tristes, que também se abriram num sorriso esplendoroso, mas não fui capaz.
A Matilde é a grande heroína deste livro e gosto de pensar que a sua irmã Inês, através de sua Mãe, escreveu ali belíssimas páginas para si.
Os pais – os irmãos e os amigos – que perdem prematuramente os seus filhos reencontram-nos nas mais pequenas coisas: na escolha de um livro, nos gestos de quem passa ou nos olhares de quem fica.
Quando acabo um livro
a sensação é esta:
- saudade do que li
na ânsia do que virá.
Desfolho a vida nos poemas
e em cada um
os dias que virão.
Depois recomeço
e a sensação é esta:
- saudade do que vivi
no verso que te trará.
Não existe tempo igual ao que subsiste à morte de um filho. Tempo no qual continuamos a viver, mas de forma diferente: sonâmbulos, face às trivialidades do mundo; vibrantes, no amor que sempre lhes dedicaremos.
No verso - e reverso - que sempre os trará.
Luís Quintino
S. João da Madeira, 21 de Julho de 2014"
Link para a notícia no FacebookAutor: Edita-Me Editora, Lda.
Data publicação: 2014-07-23 00:56:54